Por Ademar Bogo
Na história da teoria da revolução, a afetividade aparece como um sentimento concreto importantíssimo para garantir a unidade política, das organizações e das lutas. Ela se apresenta como elo de ligação entre as pessoas e fortalece a prática de valores como o companheirismo, a lealdade e a paixão pela causa revolucionária. Isto porque, a condição para sermos revolucionários, homens e mulheres, não podemos ser individualistas, dependemos uns dos outros para que os atos portadores da revolução sejam possíveis.
Ninguém melhor do que Che encarnou este valor e o desenvolveu de seu jeito; seja no trabalho voluntário; na guerrilha, com armas na mão; na carta de despedida aos filhos; no treinamento militar; no combate aos inimigos da revolução etc.
A afetividade está na essência do ser humano, o seu oposto é o desprezo e a rejeição. Ela se manifesta de mil maneiras; no olhar, no calar, no ouvir, no pensar, no tocar e no fazer. A natureza humana cria formas diferentes de expressão, onde cada ser se amplia e se torna parte da consciência coletiva.
Uma revolução acontece quando os diferentes tipos de forças se sintonizam e se
movem de acordo com os princípios estabelecidos. Mas acima de tudo, porque quem
a edifica não trai, não se corrompe e cuida de seus semelhantes que andam nas
mesmas fileiras. Então a afetividade se agrega a ética revolucionária que se
sustenta enquanto a política for revolucionária. Quando a política perde a
direção, a ética perde o juízo e a afetividade se desmancha em confrontos.
Uma revolução é a combinação de ações e relações, ideias e sentimentos. Não
pode haver uma revolução sem o uso da força. A mudança é um movimento de
forças. Mas o sujeito da revolução não é composto somente de força física,
carrega também em si imaginações, sonhos, desejos e paixões.
Houveram, em épocas passadas e ainda há, os que defendem a “revolução passiva” através da adoção de táticas não agressivas, como o processo eleitoral e a conciliação, não o confronto direto. Os que assim se posicionam são revisionistas e cumprem o mesmo papel dos que se apegam a tese pós-moderna da individualidade para explicar as relações na sociedade. O que move a sociedade capitalista são as leis violentadoras do capital e não a suposta liberdade individual.
Lenin, ao formular a teoria da revolução russa disse que: “Uma revolução popular é um processo incrivelmente complicado e doloroso, de morte da velha ordem social e nascimento da nova ordem social, do estilo de vida de dezenas de milhões de homens.”[2] Ela não pode ser pacífica por que obriga a romper com a cultura estabelecida pela falsificação e tem de reinventar as relações e a moral.
O rompimento com a velha cultura de dominação exige um novo sentir e um novo
pensar. Sartre nos disse que: “… O primeiro passo de uma filosofia deve ser de
expulsar as coisas da consciência e restabelecer a verdadeira relação dela com
o mundo …”[3] Logo, antes de pôr é preciso se preocupar em tirar o que está
encalacrado na consciência em forma de alienação que barbariza cada vez mais os
seres sociais.
A expulsão das velhas ideias deformadas permite abrir espaço para a formação de
uma nova consciência. Este novo existir passa justamente por onde estão
calcados os interesses da classe dominante. É o confronto entre o popular e o
dominante. Ao mexer com esses interesses há reações, tanto das pessoas, que
serão forçadas a “mudarem seu estilo de vida” e não aceitarem cordialmente,
quanto pelo próprio capital que resistirá em mudar de natureza e induzirá os
seus representantes a reagirem violentamente. Então as forças revolucionárias
têm de agir energicamente, como o cirurgião que age sobre o paciente para
ajudá-lo a eliminar a causa da dor. Após eliminá-la, vem o alívio.
É por assim dizer, um lado da revolução, ao qual dedicou-se muito espaço nas
discussões ao longo dos séculos. Mas há o outro lado, que, embora nem sempre
tratado teoricamente, esteve sempre presente na forma da afetividade; sem ela
não é possível construir a unidade política entre as pessoas e com as forças
revolucionárias. Temos exemplos de todos os tipos na história, desde os
enfrentamentos mais duros, como também a paixão, o respeito e o companheirismo
que alinhou os passos de nossos antepassados em direção ao socialismo. O
contrário da afetividade sempre foi o sectarismo que dividiu e impediu o
fortalecimento dos valores e da ética revolucionária.
Leandro Konder expressa bem o que representou a prática partidária e a luta
interna entre grupos, tendências e facções no seio das próprias forças
revolucionárias quando analisou a trajetória da Segunda Internacional criada em
1889 na Europa. Disse, “O clima de otimismo durou até 1914, quando começou a I
Guerra Mundial. Os socialistas se dividiram, as razões nacionais se mostraram
mais fortes que as razões de classe: os dirigentes da socialdemocracia alemã
apoiaram a burguesia da Alemanha e os dirigentes da socialdemocracia francesa
apoiaram a burguesia da França. Marx havia terminado seu famoso Manifesto do
Partido Comunista, de 1848, com a recomendação: “Proletários de todos os
países, uni-vos!. Mas, em 1914, os proletários alemães e franceses passaram a
se matar uns aos outros, de armas na mão”.[4] Ou seja, as discordâncias no
campo das ideias levou os trabalhadores para o campo de batalhas, obscurecendo
a identidade de classe.
Não era para ser esse o destino da união revolucionária dos trabalhadores do
mundo todo. Aqui em nosso país ainda é muito recente a imagem das disputas nas
eleições sindicais e nos diretórios nacionais e estaduais de alguns partidos
políticos. O sectarismo tornou-se um desvio que levou ao nada, a não ser a
morte da paixão pela revolução, pois é ele uma doença incurável. Como disse
Paulo Freire, “… O sectário seja de direita ou de esquerda, se põe diante da
história como seu único fazedor. Como seu proprietário... O povo não conta nem
pesa para o sectário…”[5] Muitas vezes não contam nem os companheiros e as
companheiras.
Quando estudamos a trajetória de Marx e Engels, sentimos uma sadia inveja da
relação entre os dois grandes elaboradores das mais profundas críticas ao
capitalismo e juntos formularam a teoria mais avançada do socialismo.
Encontramos neles exemplos de uma profunda amizade, admiração, solidariedade,
cuidado e atenção, principalmente por parte de Engels que, prontamente atendia
a todas as vezes que Marx era banido de um país devido as suas convicções
revolucionárias. Após a morte de Marx, Engels confidenciou a um amigo: “Aquilo
que todos nós somos, somo-lo por ele; e aquilo que o movimento de hoje é, é-o pela
atividade teórica e prática dele; sem ele ainda continuávamos a estar na
porcaria da confusão”[6]. Vemos que a lealdade política e a afetividade estão
nas raízes do nascimento do marxismo. Ignorar isso é o mesmo que tentar fazer
uma criança a dar os primeiros passos com uma perna só.
A solidariedade era uma necessidade de sobrevivência de todos os exilados que
antecedeu a criação da Primeira Associação Internacional em 1864. “Nasceu a
ideia de criar esta Associação em um certo banquete celebrado em Londres em 5
de agosto de 1862 por operários de diversas nações que atenderam a Exposição
Universal; um banquete de confraternização e para demonstrar a gratuidade aos
operários londrinenses pela sua nobre hospitalidade.”[7]
A hospitalidade sem dúvida nenhuma é a expressão da afetividade humana que
recolhe o desgarrado de sua terra para atendê-lo em sua sobrevivência. A
divergência de ideias seria o primeiro obstáculo para que eles, na época, não
se reunissem para confraternizar e retribuir com cordialidade e gentileza
aquele apreço. Sem isso, possivelmente, a ideia da Internacional tivesse
demorado mais a surgir ou nem sequer tivesse surgido.
A unidade política depende da unidade das ideias, e, de ambas depende a unidade
nas ações. Na maioria das vezes que as ideias entraram em confronto, levaram ao
rompimento as amizades e as relações fraternas chegando ao confronto fatal como
foi o caso da Morte de Leon Trotski assassinado a mando de Stalin em 1940 no
México. Ambos tinham sido heroicos lutadores da revolução Russa, e, lá mesmo,
se estabeleceu o germe das divergências entre “comunistas” e “trotskistas” no
mundo todo que, após quase um século passado, ainda permanecem os respingos nas
consciências e nas propostas organizativas, quando as razões dos encontros e
desencontros são completamente diferentes. A quebra da confiança é também a
perda da identidade do projeto.
Vamos encontrar também em Gramsci esta preocupação com a afetividade e o
respeito mesmo com aqueles que tem ideias diferentes, deve-se, no seu entender,
verificá-las de modo leal e amistoso, pois “a amizade não pode ser separada da
verdade e de todas as asperezas que a verdade implica.”[8]
Da revolução vietnamita podemos extrair muitos exemplos. Ho Chi-minh que foi
uma das grandes lideranças, em um de seus discursos destacou a importância da
questão do afeto: “Diante das massas, não é simplesmente escrevendo a palavra
“comunista” na testa que nos faremos amar.
As massas só dão afeto àqueles que são dignos dele por sua conduta e por suas
virtudes. É preciso que nós mesmos demos o exemplo, se queremos conduzir o
povo. Muitos de nossos camaradas têm se mostrado dignos, mas ainda há alguns,
cujos costumes são criticáveis. O Partido tem o dever de ajudá-los a
corrigirem-se.”[9] A crítica e a autocrítica então
são o remédio para que se elimine os germens do divisionismo nas fileiras das
organizações. Dividir as forças é enfraquecer a potencialidade da luta para
alcançar os objetivos.
Na revolução de Moçambique na década de 1970, destacou-se Samora Machel que em
uma conferência para mulheres se expressou assim: “… Para nós o amor só pode
existir entre pessoas livres e iguais, que possuem um ideal de engajamento
comum, ao serviço das massas e da Revolução. É sobre esta base que se edifica a
identidade moral e afetiva que constitui o amor. Precisamos, pois, descobrir
esta nova dimensão, até hoje desconhecida no nosso país. ”[10]
A sociedade socialista não só se opõe à sociedade capitalista nos aspectos
econômicos estruturais, como também no desmonte de todas as relações
estabelecidas pela cultura burguesa.
Quando Alexandra Kollontai, analisou a família e o Estado socialista, elevou a
compreensão da afetividade acima das relações sexuais entre homens e mulheres,
mas que se universalizaria no sentido de que as responsabilidades seriam também
sociais. “… Estas novas relações assegurarão à humanidade
todos os prazeres do amor livre, enobrecido pela verdadeira igualdade social
dos sexos, prazeres que eram ignorados na sociedade mercantil do regime
capitalista. ”[11] nesta perspectiva, a afetividade
ganha novas dimensões, no sentido de demonstrar que uma revolução não tem por
objetivo apenas a justiça social pela distribuição dos bens econômicos, mas
principalmente as mudanças de posturas para que o prazer seja democratizado. O
prazer é então o princípio e o fim da vida feliz. Mas não é qualquer prazer
disse Epicuro, como pensam os intemperantes, mas o prazer de nos acharmos
livres do sofrimento do corpo e das perturbações da consciência. [12] lutar é
um prazer não um martírio pois se sabe que é a única forma de ver nascer a
sociedade socialista.
Quando Olga em sua carta de despedida à Anita e a Luís Carlos Prestes, afirmou:
“Lutei pelo justo, pelo bom e pelo melhor do mundo”[13] estava reafirmando o
seu compromisso político e afetivo com a humanidade.
É evidente que há momentos que os rompimentos são inevitáveis, mas aí não é por
falta de afetividade, é que as ideias se tornaram inconciliáveis para
permanecerem juntas na mesma prática. A “ternura” de que falou Che, não
significa poupar do castigo o inimigo.
Por vezes há, não a disputa de ideias, mas desvio de caráter de pessoas que
preferem formar grupos por afinidade de certos hábitos e passam a edificar
certos sustentáculos que impossibilite qualquer tentativa de desarticular seus
privilégios. Agem como grupos fechados, facções, utilizando-se da força da
organização para se abastecerem. Isto nada tem de rebeldia política, os vícios
tomaram o lugar da prática política, ou como se poderia dizer, é a política por
outros meios, que não discute, ameaça; não planeja, inventa; não dialoga,
impõe.
Nos escritos de Che Guevara é uma constante a preocupação com o ser humano e
com as relações entre os militantes. Numa passagem ele fez referência a Fidel
para fortalecer a própria ideia de que o marxista não é uma máquina que
funciona com controle remoto, então destacou que Fidel assim se expressou em
uma intervenção: “ Quem disse que o marxismo é uma renúncia aos sentimentos
humanos, ao companheirismo, ao amor ao companheiro, ao respeito ao companheiro,
a consideração ao companheiro? Quem disse que o marxismo é não ter alma, não
ter sentimentos? Pois se foi precisamente o amor ao homem que engendrou o
marxismo; foi o amor ao homem, à humanidade, ao desejo de combater a miséria, a
injustiça, ao martírio e a toda exploração sofrida pelo proletariado que fez,
da mente de Karl Marx, surgir o marxismo…[14] somente a grandeza de Che seria
capaz de captar em Fidel esta profunda referência à essência humana. E concluiu
o raciocino com o pensamento de Martí dizendo: “Todo homem verdadeiro deve
receber no rosto o golpe dado no rosto de qualquer homem”.
Para
concluir podemos resgatar uma passagem de Nelson Mandela o incansável lutador
contra o apartheid na África do Sul, quando passou quase 3 décadas na cadeia
por defender seus ideais. Teve ele a oportunidade de receber na prisão, sua
filha mais nova Zeni, que se casara com o príncipe Thumbumuzi da Suazilândia e
então, mesmo menor de idade pôde visitá-lo na prisão acompanhada do marido e da
filha ainda sem nome: “O momento em que eles entraram
na sala foi realmente maravilhoso. Eu me pus de pé e, quando me viu, Zeni
praticamente atirou a filhinha para o marido e atravessou a sala correndo para
me abraçar. Eu não abraçava a minha filha desde que ela era pouco mais velha
que a própria filha. Abraçar de repente a minha filha já crescida foi uma
sensação estonteante, como se o tempo se houvesse acelerado numa história de
ficção científica. Depois abracei o meu novo filho e ele me deu aquela netinha
minúscula para segurar; não a soltei o tempo todo que durou a visita. Segurar
um bebê recém-nascido tão suave e vulnerável com as minhas mãos ásperas, mãos
que por tanto tempo seguraram só picaretas e pás, foi uma alegria imensa. Acho
que nunca houve homem mais satisfeito por segurar um bebê do que eu naquele
dia”.
“A visita tinha uma finalidade mais oficial: eu deveria escolher um nome para a
criança. É costume o avô escolher um nome e escolhi Zaziwe, que significa
Esperança. Esse nome guarda um significado especial para mim, pois em todos os
anos que passei na prisão a esperança jamais me havia abandonado, e dali em
diante é que nunca mais me abandonaria. Eu estava convicto de que aquela
criança seria parte da nova geração de sul-africanos para os quais o apartheid
seria uma lembrança distante: era esse o meu sonho. ”[15] vemos então que a afetividade se constitui parte da
cultura da revolução. Sem ela a vida de militantes pereceria por falta de
sensibilidade. O poder que nasce com a revolução não é ingrato e insensível tem
apenas a rudeza necessária para que saibamos que ele precisa ser aperfeiçoado
todos os dias.
Chegamos à mesma conclusão de Che Guevara: “Nós, socialistas, somos mais livres
porque somos mais perfeitos; somos mais perfeitos porque somos mais livres”.
[16] Livres, da propriedade privada, do capital, do Estado capitalista, da
cultura e da moral burguesa, e, dos valores desta sociedade. Então, para
edificarmos os homens e as mulheres do século XXI, verdadeiramente humanos e
emancipados, é um pulo.
[1]
SADER, Emir. O socialismo humanista. Petrópolis. Vozes. 1991. pg 36.
[2]
GOMES, Oziel. Lenin e a revolução russa. São Paulo; Expressão Popular; 1999; p
59.
[3] MOUTINHO, Luis Damon S. Sartre existencialismo e liberdade. São Paulo Editora
Moderna. 1995. pg 96.
[4] KONDER, Leandro. História das ideias socialistas no Brasil. São Paulo
Expressão Popular. 2003. p 20 e 21.
[5] FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro. Paz e
Terra; 14a ed. 1983; p 51 e 52.
[6] OLIVEIRA JOSÉ (trad) Friedrich Engels. Edições Avante. Lisboa. 1986, p 410.
[7] MORATO, Juan Jose. El partido socialista obrero. Madrid. Editorial Auso.
1976; p 13.
[8] GRAMSCI, Antonio. Escritos políticos. (Trad) Carlos Nelson Coutinho. Rio de
Janeiro. Civilização Brasileira. 2005; p 250.
[9] ALVAREZ, Marta Elena. (Org) Ho Chi-minh. São Paulo; Editora Ática; 1984. p
148.
[10] MACHEL, Samora. A libertação da Mulher é uma necessidade da revolução,
garantia da sua continuidade, condição do seu triunfo. In A Libertação da
Mulher. São Paulo. Global Editora; 2a ed. 1980. pg 29.
[11] KOLLONTAI, Alexandra. A família e o Estado socialista. Idem.
[12] MEWALDT, Johannes. Pensamentos de Epicuro. São Paulo. Martin Claret; 2006.
[13] MORAIS, Fernando. Olga. São Paulo. Editora Alfa-Omega. 1986 pg 294.
[14] FILHO, Aton Fon (T) Obras de Che Guevara: textos revolucionários. São
Paulo; Global Editora; 1986; p 60.
[15] MANDELA, Nelson. Longo caminho para a liberdade: autobiografia. São Paulo;
Siciliano; 1995, p 404.
[16] FILHO, Aton Fon. Che Guevara: textos Revolucionários. São Paulo. Global
editora. 1986. p 107.
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