Confiante do que vinha fazer, logo que chegou,
foi se identificando com as pessoas que estavam a sua espera, e que fizeram
parte desse momento inesquecível. Em uma roda de conversa, juntamente com
convidados da comunidade, educandos e coletivo do Colégio Iraci Salete Strozak,
relembrou, com um jeitinho todo especial, as experiências que passou no “Buraco”
─ nome dado ao lugar, às margens do Rio Xagu, onde estavam acampadas cerca de
três mil famílias do Movimento Sem Terra, em busca de uma vida digna,
construída coletivamente.
“Ainda estava em Curitiba quando a tragédia da
ocupação no Pará aconteceu, foi um momento tenso quando os dois grupos do
Paraná, entre Laranjeiras do Sul e Saudades do Iguaçu, se encaminharam para a
ocupação da fazenda Giacomet-Marodin. Os guardas que cuidavam do portão estavam
preparados para evitar qualquer coisa, mas graças a Deus, logo veio a notícia
de que tudo foi tranquilo.
A primeira impressão que tive ao chegar ao
acampamento, foi de que nunca deveria desistir, jamais perder a vontade de
viver e sempre persistir naquilo que queria. Para quem não tinha medo de nada e
estava na lista para morrer, não desanimei em momento algum, nada me colocou
medo ou me espantou do que estava predestinada a fazer.
Quando cheguei aqui, muitas famílias ainda
estavam na beira da estrada. Olhei para aquele lugar com espírito de vida,
embora não parecesse. Era realmente uma imagem de luta e perseverança. Passei
então, a me organizar com o grupo das mulheres, para ajudar os doentes, as
crianças recém-nascidas e desnutridas. As dificuldades eram tantas que não dava
tempo de parar para pensar nelas.
Depois, já na beira do rio, tudo
continuou a ser muito difícil. O “Buraco” era realmente o nome mais apropriado
para o lugar. A fumaça não se espalhava e nos barracos ela contribuía para
adoentar ainda mais os que já estavam doentes. Umidade, frio do inverno, falta
de água e comida, falta de saneamento e a presença da fumaça, era uma
combinação perfeita para nos preocuparmos cada vez mais. Lembro das pessoas que
se foram e de outras que passaram por muitas dificuldades. De um menino que na
emergência, deram-lhe excesso de remédio e acabou morrendo, para o desespero
dos pais. As gêmeas recém-nascidas, que as perninhas tinham a espessura de um
dos dedos da minha mão. Dos meninos que quase morreram de desnutrição por falta
de atenção da família. Fatos como esses, crianças recém-nascidas totalmente
desnutridas, eram comuns.
O alimento era escasso, pouco para
muitos. De alguns lugares vinham doações, fazíamos a partilha, mas não era o suficiente.
Muitas vezes uma lata de óleo tinha que ser dividida para um grupo inteiro de cinqüenta
pessoas. Passamos a fazer uma sopa nutritiva para garantir ao menos uma
refeição por dia, às crianças. Tínhamos uma organização para que todos fossem
atendidos, nos separávamos em grupos. No barraco, onde fazíamos remédios
caseiros, havia um mural com o nome de cada grupo e o número de pessoas
fragilizadas, para que a visita fosse feita todas as tardes. Levávamos reforço
para as mães que estavam amamentando. Fabricávamos um “Mucilon Caseiro”, feito
de plantas medicinais nutritivas, retiradas da mata, que eram secas, trituradas
e misturadas. Fazíamos também o xarope de caraguatá
─ planta da família das bromélias, de longas folhas espinhentas, que produz
fruto ─ para gripe, pneumonia e bronquite.
Algumas pessoas me marcaram muito, pela
coragem, pela disposição e pelo espírito de solidariedade. Um dia, em uma de
nossas andanças pelo acampamento, encontrei uma senhora, de mais ou menos 70
anos, sozinha. Não tinha ali ninguém mais de sua família, nem filhos, nem
netos, nem marido. Ela também não queria terra, porque não tinha para quem
deixar. Perguntei-lhe então o que fazia ali, e ela simplesmente disse: “Eu vim
porque quero ajudar”. Aquela atitude me deixou sem palavras diante de tantas
injustiças. Ela nos ajudou muito!
No inverno fazia muito frio, eram necessárias
ações para suprir as necessidades, aprendemos a fazer colchões de palha de
milho e feijão. As mulheres costuravam roupas de retalho para os bebês que iam
nascer. E assim a gente ia se virando.
Nunca se sabia o momento de ir embora,
e foi assim que o tempo passou. Um dia, o padre me perguntou como eu suportava
viver daquela maneira. Na minha mente veio a pergunta que imediatamente fiz a
ele: “E onde o povo encontra forças para viver?”. Aquele acampamento é a prova,
de que a força e união do povo é vida!
Claro, tínhamos que tomar cuidados e ter
precauções. Diante de tantas dificuldades, também enfrentávamos as articulações
feitas para denegrir a imagem do Movimento perante a sociedade. Grupos
adversários que incentivavam e articulavam roubos, mortes e prostituição,
causavam transtornos. Os cagoetas ─ infiltrados que se passavam por pessoas
comuns ─ eram responsáveis para passar informações do movimento para o governo
e proprietário da terra. Infelizmente, eles não conseguiam entender, que nós
não invadimos nada, apenas ocupamos com dignidade o que era nosso e estava nas
mãos de um só.
E assim, seguiu a vida. Hoje, ainda lembro-me
de muitas coisas. Sigo na vida religiosa, e sempre com o sonho de que um dia
teremos um novo projeto de sociedade, onde o povo tenha direito a terra, acesso
e cultivo. A luta, resistência e conquista do povo está aqui, neste chão. Precisamos
dar muito valor para as coisas desta Terra, pois ela é sagrada, é espaço de
vida e dignidade, por isso é crime quando colocamos veneno nela.”
Conviver e conhecer essa pessoa maravilhosa,
que fez e se dedicou tanto pela vida deste Assentamento, foi uma experiência
extraordinária.
Texto
coletivo elaborado pelos 9º anos do Colégio Iraci Salete Strozak – 2018, com
base no depoimento da Irmã Hulda Francenes, 85 anos, conhecida como Irmã Lia.
Coordenação, orientação e revisão Professora Gizeli Fiori
Gawlik.

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