segunda-feira, 13 de junho de 2022

O “Buraco”: Memórias literárias de Irmã Lia.

         


Disposta, atenciosa e com muita vontade de viver, Irmã Lia, já com idade avançada, nos encantou pela ideologia e suas histórias de um ano e meio de dedicação total de vida religiosa ao povo desta Terra ─ hoje, Assentamentos Ireno Alves dos Santos e Marcos Freire. Na época, integrante da Pastoral da Terra, ligada à Igreja Católica, recebeu a tarefa de acompanhar as ocupações realizadas pelos movimentos sociais. E, nesse contexto de devoção e luta, viveu momentos marcantes da sua vida.

Confiante do que vinha fazer, logo que chegou, foi se identificando com as pessoas que estavam a sua espera, e que fizeram parte desse momento inesquecível. Em uma roda de conversa, juntamente com convidados da comunidade, educandos e coletivo do Colégio Iraci Salete Strozak, relembrou, com um jeitinho todo especial, as experiências que passou no “Buraco” ─ nome dado ao lugar, às margens do Rio Xagu, onde estavam acampadas cerca de três mil famílias do Movimento Sem Terra, em busca de uma vida digna, construída coletivamente.

“Ainda estava em Curitiba quando a tragédia da ocupação no Pará aconteceu, foi um momento tenso quando os dois grupos do Paraná, entre Laranjeiras do Sul e Saudades do Iguaçu, se encaminharam para a ocupação da fazenda Giacomet-Marodin. Os guardas que cuidavam do portão estavam preparados para evitar qualquer coisa, mas graças a Deus, logo veio a notícia de que tudo foi tranquilo.

A primeira impressão que tive ao chegar ao acampamento, foi de que nunca deveria desistir, jamais perder a vontade de viver e sempre persistir naquilo que queria. Para quem não tinha medo de nada e estava na lista para morrer, não desanimei em momento algum, nada me colocou medo ou me espantou do que estava predestinada a fazer.

         Quando cheguei aqui, muitas famílias ainda estavam na beira da estrada. Olhei para aquele lugar com espírito de vida, embora não parecesse. Era realmente uma imagem de luta e perseverança. Passei então, a me organizar com o grupo das mulheres, para ajudar os doentes, as crianças recém-nascidas e desnutridas. As dificuldades eram tantas que não dava tempo de parar para pensar nelas.

         Depois, já na beira do rio, tudo continuou a ser muito difícil. O “Buraco” era realmente o nome mais apropriado para o lugar. A fumaça não se espalhava e nos barracos ela contribuía para adoentar ainda mais os que já estavam doentes. Umidade, frio do inverno, falta de água e comida, falta de saneamento e a presença da fumaça, era uma combinação perfeita para nos preocuparmos cada vez mais. Lembro das pessoas que se foram e de outras que passaram por muitas dificuldades. De um menino que na emergência, deram-lhe excesso de remédio e acabou morrendo, para o desespero dos pais. As gêmeas recém-nascidas, que as perninhas tinham a espessura de um dos dedos da minha mão. Dos meninos que quase morreram de desnutrição por falta de atenção da família. Fatos como esses, crianças recém-nascidas totalmente desnutridas, eram comuns.

         O alimento era escasso, pouco para muitos. De alguns lugares vinham doações, fazíamos a partilha, mas não era o suficiente. Muitas vezes uma lata de óleo tinha que ser dividida para um grupo inteiro de cinqüenta pessoas. Passamos a fazer uma sopa nutritiva para garantir ao menos uma refeição por dia, às crianças. Tínhamos uma organização para que todos fossem atendidos, nos separávamos em grupos. No barraco, onde fazíamos remédios caseiros, havia um mural com o nome de cada grupo e o número de pessoas fragilizadas, para que a visita fosse feita todas as tardes. Levávamos reforço para as mães que estavam amamentando. Fabricávamos um “Mucilon Caseiro”, feito de plantas medicinais nutritivas, retiradas da mata, que eram secas, trituradas e misturadas. Fazíamos também o xarope de caraguatá ─ planta da família das bromélias, de longas folhas espinhentas, que produz fruto ─ para gripe, pneumonia e bronquite.

Algumas pessoas me marcaram muito, pela coragem, pela disposição e pelo espírito de solidariedade. Um dia, em uma de nossas andanças pelo acampamento, encontrei uma senhora, de mais ou menos 70 anos, sozinha. Não tinha ali ninguém mais de sua família, nem filhos, nem netos, nem marido. Ela também não queria terra, porque não tinha para quem deixar. Perguntei-lhe então o que fazia ali, e ela simplesmente disse: “Eu vim porque quero ajudar”. Aquela atitude me deixou sem palavras diante de tantas injustiças. Ela nos ajudou muito!

No inverno fazia muito frio, eram necessárias ações para suprir as necessidades, aprendemos a fazer colchões de palha de milho e feijão. As mulheres costuravam roupas de retalho para os bebês que iam nascer. E assim a gente ia se virando.

         Nunca se sabia o momento de ir embora, e foi assim que o tempo passou. Um dia, o padre me perguntou como eu suportava viver daquela maneira. Na minha mente veio a pergunta que imediatamente fiz a ele: “E onde o povo encontra forças para viver?”. Aquele acampamento é a prova, de que a força e união do povo é vida!

Claro, tínhamos que tomar cuidados e ter precauções. Diante de tantas dificuldades, também enfrentávamos as articulações feitas para denegrir a imagem do Movimento perante a sociedade. Grupos adversários que incentivavam e articulavam roubos, mortes e prostituição, causavam transtornos. Os cagoetas  ─ infiltrados que se passavam por pessoas comuns ─ eram responsáveis para passar informações do movimento para o governo e proprietário da terra. Infelizmente, eles não conseguiam entender, que nós não invadimos nada, apenas ocupamos com dignidade o que era nosso e estava nas mãos de um só.

E assim, seguiu a vida. Hoje, ainda lembro-me de muitas coisas. Sigo na vida religiosa, e sempre com o sonho de que um dia teremos um novo projeto de sociedade, onde o povo tenha direito a terra, acesso e cultivo. A luta, resistência e conquista do povo está aqui, neste chão. Precisamos dar muito valor para as coisas desta Terra, pois ela é sagrada, é espaço de vida e dignidade, por isso é crime quando colocamos veneno nela.”

Conviver e conhecer essa pessoa maravilhosa, que fez e se dedicou tanto pela vida deste Assentamento, foi uma experiência extraordinária.

 

            Texto coletivo elaborado pelos 9º anos do Colégio Iraci Salete Strozak – 2018, com base no depoimento da Irmã Hulda Francenes, 85 anos, conhecida como Irmã Lia.

Coordenação, orientação e revisão Professora Gizeli Fiori Gawlik.

 

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